Os Jogos em Nossa Sociedade

Na sociedade em que vivemos, vemos o pensamento coletivo de que os videogames e seus jogos evoluíram de vilões (influenciadores de comportamentos violentos) para uma das maiores manifestações culturais de nossos dias a partir do surgimento dos e-sports e da cultura gamer – dialetos, expressões, roupas, músicas e etc. Quem diria que a poucos anos atrás, iríamos sintonizar a ESPN e assistiríamos a final do campeonato de Mortal Kombat ou League of Legends.

A cultura gamer é uma realidade incontestável, evidenciada pelos números impressionantes desse mercado. Segundo o relatório Global Gaming Software Market, a indústria de jogos está projetada para faturar US$ 65,19 bilhões entre 2020 e 2024. No Brasil, o crescimento também é notável, com um aumento de 164% no número de empresas de desenvolvimento de jogos, conforme o 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, realizado pelo Ministério da Cultura de 2014 a 2018. (SAKUDA e FORTIM, 2018).

Ao ler isso, você deve estar se perguntando: como isso se relaciona aos processos organizacionais? Tentarei, através deste post, mostrar como se beneficiar deste mercado em ascensão em seus processos organizacionais.

Os Jogos Com Propósito

Primeiramente, antes de tudo é necessário saber que jogos digitais já há algum tempo não servem somente para entreter as pessoas. Existe uma classe de jogos que visa ir além do entretenimento puro e simples, buscando apoiar publicidade, educação, treinamento e outras ações. Estes jogos são conhecidos amplamente como “jogos sérios”, sendo conceituados por MICHAEL e CHEN (2005) como jogos que são projetados com o objetivo primário de transmitir alguma mensagem ou objetivo de ensino aos jogadores, que não só o simples entretenimento.

Contudo, o termo “jogos sérios” costuma causar certa confusão aos leitores, remetendo ao pensamento de que estes tipos de jogos sejam enfadonhos, desmotivadores e burocráticos. Preferi, portanto, usar o termo jogo com propósito (VON AHN, 2006), para me referir a jogos que busquem a entrega de determinados objetivos aos jogadores, sem deixar de lado a característica lúdica do game, buscando, assim, não passar a impressão de jogos “chatos” para o leitor.

Assim, ao pensar em um jogo com propósito, é preciso pensar a respeito do benefício que estes jogos podem trazer. Jogos que simulem ambientes e situações do mundo real, possibilitam que os jogadores experienciem alguma situação que seria impossível no mundo real, como cirurgias médicas ou questões organizacionais de alto risco (envolvendo por exemplo, questões de segurança (CORTI, 2006).

Jogos no ambiente corporativo?

Pensando no ambiente organizacional, entendo os processos de negócio como “organismos vivos”, ou seja, eles estão em constante mutação, evoluídos pelas organizações de modo que a empresa consiga inovar e se mantenha competitiva no seu nicho de mercado. Com isso, treinamentos do time são ações constantes dentro das empresas. Jogos com propósito, como já posto anteriormente, podem ser uma estratégia útil para que a organização forneça aos seus stakeholders o treinamento necessário ao novo processo por meio de uma vivência no ambiente virtual do jogo.

Uma outra oportunidade que destaco sobre o uso de jogos de propósito em processos organizacionais se alinha ao post “BPM & Games: Aumentando o Engajamento dos Participantes dos Processos”, que aborda o tema de Social BPM. Em resumo, o Social BPM tem como objetivo conectar os processos e as pessoas (executores de processo, gestores e clientes), no qual eles possam contribuir – visões, comentários etc. – com a melhoria e inovação dos processos organizacionais. Neste ponto, os jogos com propósito surgem como oportunidade, na medida em que abrem uma maneira de apresentar processos a diversos públicos diferentes, sejam estes jogos modelados a partir de modelos AS-IS, ou, até mesmo, jogos criados para avaliar modelos TO-BE.

Como os jogos são relacionados aos processos de negócio?

Quando falamos de jogos e processos de negócio, muitas vezes a temática de gamificação surge como proposta de tornar os processos organizacionais mais lúdicos e engajantes (PFLANZL, 2019). Porém, não considero gamificação e jogos como a mesma coisa. De acordo com DETERDING et al. (2011), a gamificação pode ser conceituada como “usar elementos de jogos em contextos não jogáveis”. Neste sentido, entendo que a gamificação apenas aplica elementos de jogos (pontos, classificações, insígnias, níveis, sons, recompensas e outros) para tornar um ambiente mais lúdico aos seus usuários engajando-os, não sendo configurado como um jogo em per-si.

Pensando especificamente em jogos digitais para processos de negócio, o mais comum de se encontrar são jogos que busquem o treinamento de jogadores, não em relação ao processo organizacional, mas em ensinar como processos de negócio são modelados em alguma linguagem de modelagem como BPMN, EEPC e outras (CLASSE e ARAUJO, 2015; CLASSE et al., 2018). Um bom exemplo disso é o jogo digital Innov8 (LALI, 2008) da IBM, que tem como objetivo demonstrar fundamentos de gestão de processos de negócio em uma companhia fictícia a fim de aprender, dentre outros aspectos, como modelar o negócio da empresa.

Entretanto, projetar um jogo digital não é uma tarefa simples, quanto mais um jogo digital que represente um processo de negócio, que deve fielmente as regras, decisões, recursos, dificuldades e outros aspectos para que as pessoas que os joguem não tenham uma impressão equivocada da empresa.

Créditos: IBM Innov8 – (LALI, 2008)
Créditos: IBM Innov8 – (LALI, 2008)

Jogos Digitais Baseados em Processos de Negócio

Enfim, então, como é possível transcender os processos de negócio para um jogo digital, em que os jogadores consigam aprender o processo organizacional sem introduzir neles situações ou impressões equivocadas?

Bem, este foi um desafio enfrentado em meu doutorado. Sob a orientação dos professores: Drª. Renata Araújo (CIBEDERM – Universidade Presbiteriana Mackenzie), Dr. Geraldo Xexéo (LUDES – PESC/COPPE/UFRJ) e Dr. Sean Siqueira (SaL – PPGI/UNIRIO) foi apresentado um método chamado Play Your Process (PYP), o qual objetiva a sistematização de jogos digitais tendo como base modelos de processo de negócio. Estes jogos são capazes de internalizar aspectos do processo de negócio, mapear elementos de um modelo (BPMN) e transformá-los em elementos para o projeto de jogos.

Processo de negócio + Jogos com propósito = Play Your Process
Processo de negócio + Jogos com propósito = Play Your Process

Desta forma, estes jogos conseguem que os aspectos principais do processo organizacional possam ser entendidos pelos jogadores, por meio da experienciação do processo através do mundo do jogo (CLASSE et al. 2019a). Surge assim, um novo gênero para os jogos com propósito batizado como jogos digitais baseados em processos de negócio (CLASSE et al. 2019b).

Ilustração de Conversão de Processos de Negócio Para um Jogo Digital feito através do método PYP.
Crédito (CLASSE et al. 2019b) – Ilustração de Conversão de Processos de Negócio Para um Jogo Digital feito através do método PYP.

Como dito anteriormente, para construir de jogos baseados em processos de negócio é necessário que conhecer muito bem o contexto e características dos processos, seus modelos e o significado dos elementos e símbolos usados, para que os desenvolvedores de jogos consigam associá-los ao ambiente organizacional real. Pensado nisso, o cerne do método PYP se concentra em mapear elementos de modelos de processo para elementos de game design. Como fazer isso?

Como mapear elementos de processo para elementos de game design?

A inspiração surgiu ao analisar a estrutura e observar o mapa do jogo clássico da Nintendo, o Super Mario Bros 3. Para os leitores que não o conhecem, este é um jogo de gênero aventura/plataforma, onde um encanador, o Mario, precisar resgatar uma princesa, sendo este o objetivo do jogo.

Pois bem, a grande sacada surgiu ao pensar jogos como processos de negócio da seguinte forma: em um processo de negócio existe sempre um objetivo. Para alcançar o objetivo é necessário passar pelas atividades e, em cada uma delas, consumir recursos e gerar insumos até que elas estejam concluídas, alcançando o objetivo final do processo e encerrando-o (DUMAS et al. 2014).

Super Mario Bros 3 como um processo de negócio

Voltando ao exemplo do Super Mario Bros 3, segundo a definição de DUMAS et al. (2014), é possível defini-lo como um processo de negócio: o jogo se inicia com o evento do rapto da princesa Peach, o qual é apresentado ao protagonista, Mário (ator) como um problema, e tendo o resgate da princesa como seu objetivo principal. Para o resgate, é preciso concluir as fases (atividades/tarefas), em tempo definido, percorrendo diferentes caminhos (decisões), enfrentando inimigos (tarefas/outros atores) no Mundo dos Cogumelos (local). Para isso, é preciso que ele use penas, estrelas, flores e cogumelos como ferramentas (recursos) como meios de concluir as tarefas, derrotar os inimigos e salvar a princesa (objetivo) (CLASSE et al. 2019b).

Mapa do Primeiro Mundo de Super Mário Bros 3 e sua representação em BPMN.
Créditos (CLASSE et al., 2019b): Mapa do Primeiro Mundo de Super Mário Bros 3 e sua representação em BPMN.

Deste modo, ficou evidente que, devido à natureza narrativa e à estrutura de acontecimentos, os jogos de aventura poderiam ser generalizados a outros processos de negócio. A partir daí, foi possível que as pessoas envolvidas no desenvolvimento de jogos baseados em processo de negócio conseguissem traduzir os modelos de processos organizacionais para elementos de jogos e, consequentemente, representar o processo no mundo do game.

Alguns exemplos destes tipos de jogos já foram construídos. Tendo como contexto processos de prestação de serviços públicos, jogos como: Desaparecidos, Cartão SUS Adventure, Passaporte Intergalático, The PROUNI Game, O Recruta e Prosperópolis foram desenvolvidos. Estes jogos criaram uma representação de processos organizacionais públicos, para que os clientes externos (os cidadãos) pudessem entender e refletir sobre como eles funcionam (segundo a administração pública) e, com isso, consigam contribuir com suas melhorias.

Conclusão

Usar jogos digitais pode ser uma nova maneira de prover treinamentos organizacionais e, também, permitir que pessoas envolvidas no processo, internos ou externos à organização possam vivenciar e aprender sobre o processo, sem o risco de interferir com o dia a dia da empresa. Isso traz oportunidades para testar variações de processos organizacionais (melhorias, por exemplo), e obter novas visões sobre as pessoas que o executam. Esta é a proposta do Play Your Process.

Lógico que o método PYP não é uma “bala de prata” a todas as questões de melhoria de processos organizacionais, porém ele pode ser considerado como mais uma forma para que as organizações inovem em seus processos de negócio, apoiando também, propostas associadas à Social BPM e treinamento.

Jogos digitais vieram para ficar em nosso mundo globalizado e com eles várias são as oportunidades que surgiram. Assim, concluo com um convite a todos os leitores e gestores organizacionais: Que tal tornarem seus processos mais lúdicos? Querem uma nova forma de treinamento em sua empresa? Querem um ambiente de treinamento onde os riscos e erros não prejudiquem a saúde da sua empresa?  Então: Let’s Play Your Process!

Referências

CORTI, K. Games-based Learning; a serious business application. Informe de PixelLearning, v.34, n.6, pp.1-20, 2006.

CLASSE,  T. e  ARAUJO,  R.  Gamificação  Para  Participação  Social  Em  Processos Públicos: Mapeamento Sistemático. Simpósio Brasileiro de Sistemas Colaborativos (SBSC), p. 130-137, 2015.

CLASSE, T.;  ARAUJO, R.; XEXÉO, G. Combining Business Process Modela into Digital Game Design: A Literatura Review. Relatórios Técnicos DIA/UNIRIO, 2018.

CLASSE, T. M., ARAUJO, R. M., XEXÉO, G. B., SEQUEIRA, S. The Play Your Process Method for Business Process-Based Digital Game Design. International Journal of Serious Games, 6(1), 27-48, 2019a.

CLASSE, T.M.; ARAUJO, R.M.; XEXEO, G.B. Jogos Digitais Baseados em Processos de Negócio. Simpósio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital (SBGames), 2019.

DETERDING, S.; DIXON, D.; KHALED, R.; NACKE, L. (2011) From Game Design Elements to Gamefulness: Defining “Gamification”. In Proceedings of the 15th International Academic MindTrek Conference: Envisioning Future Media Environments; MindTrek ’11; Association for Computing Machinery: Tampere, Finland, 2011; pp 9–15.

DUMAS, M.; LA ROSA, M., MENDLING, J., REIJERS, H.A. Fundamentals of Business Process Management. Berlin: Springer, 2013.

LALI, A. Play the Innov8 game to learn business process management. IBM Developer Works, 2008.

MICHAEL, D. R.; CHEN, S. L. Serious games: Games that educate, train, and inform. Muska & Lipman/Premier-Trade, 2005.

PFLANZL, N. Gamification in Business Process Modeling: A Gameful Learning Process for Business Process Modeling. Dissertação de Mestrado, University of Münster, Germany, 2019.

SAKUDA. L. O.; FORTIM, I. (Org.). 2º Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais. Ministério da Cultura: Brasília, 2018.

VON AHN, L. Games with a purpose. Computer, v. 39, n. 6, p. 92-94, 2006.